terça-feira, 18 de junho de 2013

 A TRAMA DA MEMÓRIA



O genial Quintana afirma que “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente”. Ele não ocupa lugar porque  já não mais existe, ele jaz nos escombros do tempo, nos descaminhos da memória. O que já foi existe apenas na memória e nas fotos e nos fatos. Nada como os jornais para guardar o passado em seus pequenos meandros.  
 Só a memória trama e vincula o passado e futuro entrelaçando-os com presente. Cada homem tem seu depósito de memória, e escolhe o que guardar. Alguns tudo esquecem outros só guardam mágoas e rancores. Outros pensam em seus pecados e esperam o castigo. Há ainda os que só recordam o que foi bom. Mais sério é o caso dos que tudo lembram, esses são fadados ao desespero. Há muitos anos  havia um parente meu que se lembrava de tudo, vivia das sobras do tempo. Como os antigos pajés, era consultado para tudo e para nada. Tinha uma resposta pronta sobre qualquer assunto. Era como se guardasse na cabeça a chave geral do tempo. Nunca desligava. O peso do tempo acabou com sua sanidade, um belo dia, se enforcou. Assim  há memória e memórias, de vida e de morte.  Se o   tempo é a matéria prima da memória  ela é seu repositório.
            As cidades são temporais como os homens. Crescem e se transformam, matando pouco a pouco partes seu passado, e inventando partes de seu futuro. As cidades também morrem, como a Atlântida perdida para sempre, e Herculano abafada pelas cinzas do Vesúvio. Muitas cidades se escondem sob a superfície das cidades.
Assim cada construção de Caxias, esconde  Caxias passadas , repousando   nos  entulhos. Moradores que viraram cinzas, e ficaram para sempre congelados no seu tempo. Redesenhar a cidade dos escombros só é possível com as lembranças.. Apascento as imagens mortas da cidade, como um rebanho de sombras. Cada homem que viveu nas casas destruídas (e são tantas) é sombra que vaga, num mundo inexistente.  
Lembro-me de uma ensolarada Caxias, das mulas, das carrocinhas puxadas à cavalo,que traziam o pão ,o leite e as verduras na porta de casa. Lembro-me das casas baixas, em cujos telhados passeavam e viviam gatos; dos quintais, onde se criava galinhas e se tirava água do poço em pleno centro. Lembro-me das ruas sem calçamento, onde a lama era uma lembrança da natureza; das poucas árvores nas calçadas; dos pedriscos na Praça e dos seus canteiros cercados com pequenas grades de ferro. Lembro-me das roseiras em flor na primavera, ainda mais belas  na lembrança;  da neve  sob a qual despontavam amores perfeitos e  junquilhos Como Proust degusto as mil folhas  do Café Atlântico,cujo sabor é melhor do que jamais foi.Onde foram parar os junquilhos nevados?
Hoje vejo uma Caxias enevoada pela fumaça dos carros, como se vista com olhos com cataratas. Mergulhada na poluição. Do asfalto negro e das sombras dos prédios, que impedem a luz do sol, do limo e da umidade. A cidade dos carros, da qual os pedestres são excluídos. Vejo a Praça pintada pelos excrementos das pombas, como  depósito de guano, no qual se refestelam gordos  ratos;cuja beleza perdida esconde-se na sombras; onde o drogados  insistem pisotear  o gramado, enquanto surfam em outros espaços. Vejo os prédios feios, se acumulando em cada rua e quadra, sem qualquer controle.  Muitos dos quais já vêm com o habite-se para os urubus. Onde estão os gatos que passeavam nos telhados?

Da trama do passado e do presente é possível traçar o futuro, como uma gota de sangue revela a espiral genética. Caxias segue o modelo de São Paulo, onde tudo é destruído para ser reconstruído com lucro. Caxias continuará crescendo, construindo monumentos ao mau gosto, sobre os escombros do passado,  num futuro cada vez mais distante da ensolarada  Caxias antiga. Seria de desejar administradores amassem a cidade e a protegessem, em lugar de atira-la à sanha das construtoras, destruidoras do passado. Assim jaz a cidade antiga de Caxias, que já não existe,  que é imagem fugidia do passado que o presente já não reconhece.  

quinta-feira, 13 de junho de 2013

TALENTO PARA AS PALAVRAS


 As universidades não foram criadas para formar profissionais, mas para proporcionar um espaço para a reflexão e conhecimento, mais no sentido teórico do que prático. Poucos iam para as universidades para ser tipógrafo, telegrafista, médico.  Essas profissões eram apreendidas com outros profissionais do ofício. Houve um tempo em que, por exemplo, os dentistas apreendiam seu ofício com os dentistas, e as parteiras com as parteiras Uma coisa era a formação e bem outra da profissão. No mundo atual os profissionais são formados nas universidades, enquanto o saber fica em lugar incerto e não sabido. 
No Brasil, o príncipe regente Dom João criou as escolas técnicas de medicina e de direito, mas não universidades. Apenas no século XX (1912) foram formadas as primeiras universidades brasileiras. Os portugueses não queriam sábios, mas artífices. O conhecimento é coisa perigosa, desde os tempos de Eva. Para ser mais precisa,  o mais perigoso de todos.  Durante séculos os brasileiros viveram à revelia do conhecimento, em compensação era o pais dos bacharéis, práticos em leis  .
De certa forma em algumas áreas do saber voltou-se ao passado, assim qualquer um pode ser historiador, geógrafo, antropólogo ou jornalista. Sem passar pelo aprendizado com outros profissionais. Alguns já nascem sabendo, com o profundo orgulho, que só a ignorância confere.  O mesmo não acontece com os médicos e com os advogados, regidos por leis e associações mais fortes do os cursos superiores, na atribuição de seus direitos.
Morreu Jimmy Rodrigues, que até nome de jornalista recebeu no berço. Mestre das palavras e doutor em comunicação, que nunca frequentou   curso de jornalismo. O primeiro elogio que ouvi sobre Jimmy, foi de Dona Adelaide Rosa, diretora ou vice da escola Duque de Caxias.  Ela falou que ele tinha futuro com a língua. Então eu era pequena, mas, passados setenta anos, ainda me lembro da expressão que usou ”Jimmy tem talento para as palavras.” Creio que o elogio vale para sua vida como comunicador. Só muito mais tarde comecei a ler suas saborosas crônicas. Trabalhando na Secretária do Cristovão de Mendonza (recolhida da sala de aula pela Revolução Gloriosa), em 1970, buscando uma ficha para um atestado, encontrei a de Jimmy Rodrigues. Logo me lembrei do elogio de Dona Adelaide e comprovei que tirara notas máximas em português. Jimmy vivendo em Caxias, onde durante anos os jornalistas trabalharam de graça (ou quase) teve de apelar para vários empregos, para sobreviver. Não podendo  se dedicar  apenas a seu talento maior o das palavras.   O amor pela língua e o talento não se aprende, esses ,nasceram  com ele.  
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quarta-feira, 12 de junho de 2013

 GREVE DOS PATRÕES

 

Há um livro magnífico Pesos e Medidas de Ítalo João Balen (clássico da literatura caxiense) que narra em versos (em dialeto e português) a revolta dos comerciantes locais contra as determinações legais de aferir os pesos e medidas de seus estabelecimentos. No inicio do século XX eram usadas balanças que tinham dois braços ,num dos deles  eram colocados pesos e no outro o produto a ser pesado Havia ainda medidas, ou seja,  metros para medir tecidos  e recipientes para medir líquidos. Segundo Balen,a maioria deles  era fraudada,o quilo poderia pesar 700 gramas , o metro oitenta centímetros e  uma  tara de quatro litros poderia conter três.Mas de qualquer forma era típico de então(só de então ?) tentar enganar os fregueses   e  o fisco.
 Quando eu digo que Caxias é engraçada, tenho razão, o Iotti que o diga. Não sei se já aconteceram greves de empresários em outros lugares, mas em Caxias sim. Só poderia ocorrer em Caxias, fato raro nos anais dos movimentos paredistas  nacionais.
Getúlio Vargas como ninguém atendeu as necessidades dos trabalhadores, com leis e medidas que contemplassem suas lutas, como o salário mínimo, aposentadorias e pensões,o  que onerou demais os patrões.Mas ,ainda assim, buscava contemplar as exigências dos patrões, o que não era fácil. Para manter o equilíbrio na difícil tarefa  teve que conter gastos  e implementar  a  cobrança fiscal. Fiscais do imposto de consumo e do imposto de renda passaram a atuar  com mais rigor junto às empresas industriais e comerciais do Brasil.
            A chegada dos fiscais ao município de Caxias acarretou pânico entre os patrões locais, nem sempre cônscios de suas obrigações. O desespero se instalou, pois nada é mais sério do que ser lesado no bolso.  Um empresário se suicidou e os outros não sabiam como proceder para afastar o perigo. Optaram por uma assembleia geral da Associação dos Comercantes, convocada para o dia três de agosto de 1936. Nela, ficou decidido que o comércio e a indústria fechariam seus estabelecimentos, até que as autoridades dessem solução ao problema da cobrança do fisco. Além da greve a Assembleia decidiu enviar telegramas para as autoridades federais e estaduais e aos órgãos de classe.
A greve continuou até o dia 5 de agosto. Na noite desse dia realizou-se nova assembleia na qual compareceram cerca de mil associados, bem como o Delegado Fiscal e o chefe do Imposto de Renda. Nela ficou decidido manter a greve até o dia seguinte, às doze horas. Na manhã seguinte foi realizada uma reunião na Prefeitura Municipal, que resultou em nada, pois, não atendeu as soluções pretendidas.     
O governo optou apenas pela  substituição dos fiscais. Por outro lado, o Delegado afirmou que eles tinham agido de forma correta e  que seus atos estavam baseados nos dispositivos legais Sua a missão era executar as leis fiscais, autuando os infratores, para julgamento das infrações verificadas. Decidido isso, não havia o que fazer, os estabelecimentos foram reabertos.
A greve revelou o poder de organização do grupo, demonstrando por outro lado que os empresários estavam afastados das decisões econômicas nacionais. Apesar de terem dado quantias consideráveis à revolução de 1930! Se os contraventores de hoje fizessem greve, nada funcionaria no país. Bons tempos aqueles, onde os contraventores faziam greve!