A TRAMA DA MEMÓRIA
O genial Quintana afirma que “O passado não
reconhece o seu lugar: está sempre presente”. Ele não ocupa lugar porque já não mais existe, ele jaz nos escombros do
tempo, nos descaminhos da memória. O que já foi existe apenas na memória e nas
fotos e nos fatos. Nada como os jornais para guardar o passado em seus pequenos
meandros.
Só a memória trama e vincula o passado e
futuro entrelaçando-os com presente. Cada homem tem seu depósito de memória, e escolhe o que guardar. Alguns tudo esquecem
outros só guardam mágoas e rancores. Outros pensam em seus pecados e esperam o
castigo. Há ainda os que só recordam o que foi bom. Mais sério é o caso dos que
tudo lembram, esses são fadados ao desespero. Há muitos anos havia um parente meu que se lembrava de tudo,
vivia das sobras do tempo. Como os antigos pajés, era consultado para tudo e
para nada. Tinha uma resposta pronta sobre qualquer assunto. Era como se
guardasse na cabeça a chave geral do tempo. Nunca desligava. O peso do tempo
acabou com sua sanidade, um belo dia, se enforcou. Assim há memória e memórias, de vida e de morte. Se o tempo é a matéria prima da memória ela é
seu repositório.
As
cidades são temporais como os homens. Crescem e se transformam, matando pouco a
pouco partes seu passado, e inventando partes de seu futuro. As cidades também morrem,
como a Atlântida perdida para sempre, e Herculano abafada pelas cinzas do Vesúvio.
Muitas cidades se escondem sob a superfície das cidades.
Assim
cada construção de Caxias, esconde Caxias passadas , repousando nos entulhos. Moradores que viraram cinzas, e
ficaram para sempre congelados no seu tempo. Redesenhar a cidade dos escombros só é possível com as lembranças.. Apascento as imagens mortas da
cidade, como um rebanho de sombras. Cada homem que viveu nas casas destruídas (e
são tantas) é sombra que vaga, num mundo inexistente.
Lembro-me
de uma ensolarada Caxias, das mulas, das carrocinhas puxadas à cavalo,que
traziam o pão ,o leite e as verduras na porta de casa. Lembro-me das casas
baixas, em cujos telhados passeavam e viviam gatos; dos quintais, onde se
criava galinhas e se tirava água do poço em pleno centro. Lembro-me das ruas
sem calçamento, onde a lama era uma lembrança da natureza; das poucas árvores
nas calçadas; dos pedriscos na Praça e dos seus canteiros cercados com pequenas
grades de ferro. Lembro-me das roseiras em flor na primavera, ainda mais belas na lembrança;
da neve sob a qual despontavam
amores perfeitos e junquilhos Como
Proust degusto as mil folhas do Café
Atlântico,cujo sabor é melhor do que jamais foi.Onde foram parar os junquilhos
nevados?
Hoje
vejo uma Caxias enevoada pela fumaça dos carros, como se vista com olhos com
cataratas. Mergulhada na poluição. Do asfalto negro e das sombras dos prédios, que
impedem a luz do sol, do limo e da umidade. A cidade dos carros, da qual os
pedestres são excluídos. Vejo a Praça pintada pelos excrementos das pombas,
como depósito de guano, no qual se
refestelam gordos ratos;cuja beleza
perdida esconde-se na sombras; onde o drogados insistem pisotear o gramado, enquanto surfam em outros espaços.
Vejo os prédios feios, se acumulando em cada rua e quadra, sem qualquer
controle. Muitos dos quais já vêm com o
habite-se para os urubus. Onde estão os gatos que passeavam nos telhados?
Da
trama do passado e do presente é possível traçar o futuro, como uma gota de
sangue revela a espiral genética. Caxias segue o modelo de São Paulo, onde tudo
é destruído para ser reconstruído com lucro. Caxias continuará crescendo, construindo
monumentos ao mau gosto, sobre os escombros do passado, num futuro cada vez mais distante da
ensolarada Caxias antiga. Seria de
desejar administradores amassem a cidade e a protegessem, em lugar de atira-la
à sanha das construtoras, destruidoras do passado. Assim jaz a cidade antiga de Caxias, que já não existe, que é imagem fugidia do passado que o presente
já não reconhece.
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