quinta-feira, 23 de agosto de 2012


A CRIANÇA E O PECADO



Minha mãe me vem à memória. Havia dias em que ia a velórios, de conhecidos ou não. Puxava o terço, a ladainha ou o que fosse de costume, então. Havia dias que ela fazia visitas aos parentes, ou não. Mas havia um dia especial que ela anunciava “hoje vou visitar a mulher do Padre”. Católica ela era, mas não burra,  entendia  muito bem o que via. Era uma de suas visitas favoritas.
Não se tratava da esposa de um antigo sacerdote, nada disso, era a mulher que viveu maritalmente por décadas, com  famoso pároco da antiga Caxias. Não sei como minha mãe a conheceu, mas sei gostava dela e era sua amiga. Segundo ela dizia era cheia de boas qualidades.  Caprichosa, ela cuidava muito bem do santo ministro. Minha mãe  contou como os dois se conheceram. Foi numa festa de padroeiro de uma capela do interior. Ela dirigia a cozinha, cozinhava tão bem que o padre quis conhecê-la. E, biblicamente a conheceu.   Os dois viveram juntos num apartamento no centro da cidade, até a morte  dele. Enfim, uma história banal já imortalizada por Eça de Queiroz, Emile Zola e outros menos votados. Afinal os padres são apenas homens (com empáfia!).  
Essa seria  apenas mais uma história triste e comum não fosse o Pároco ser o mais reacionário dos reacionários e o mais conservador dos homens.. Poderia ter feito parte dos CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Eu o conhecia bem Muitas vezes me confessei com ele, e morria de medo, pois era extremamente curioso exigindo detalhes de coisas, cujos eu desconhecia. Afinal, eu escolhia os pecados no catecismo!Então, se fazia a Eucaristia cedo, quando não se tinha a noção de pecado. Foi numa dessas confissões, que ele que deixou perplexa, e me fez desacreditar dos adultos (que antes eu julgava sábios).
Eu tinha seis anos, tirei algumas moedas da gaveta da escrivaninha de meu pai para comprar números de uma rifa,que as freiras organizaram para salvar “os negrinhos da África”(palavras das irmãs  de São José). Então eu comprei os números da rifa e devo ter salvado alguns pagãos. Em compensação levei uns tapas (naqueles tempos não havia o Estatuto das Crianças) e uma tremenda xingada de meu pai.
Sabendo do meu pecado, fui me confessar, O Pároco (aquele mesmo) afirmou que eu não cometera pecado, pois o dinheiro do meu pai seria meu também. Fiquei perplexa. Assim aprendi que esse negócio de pecado, dependia da opinião dos adultos. Pecado era muito relativo. Na verdade, o certo e o errado dependem do tempo, do lugar, da religião e dos tabus de cada grupo social.   Um leitãozinho assado, tabu para os judeus é a máxima delicia para os católicos (seguidores da lei judaica). Perplexidade não resolvida até hoje. Vá querer julgar os pecados dos homens
Loraine Slomp Giron Twitter: loslomp Blog :historiadaquiblogspot.com

quinta-feira, 16 de agosto de 2012


SEA DELINA

Ex escravos após a abolição. 1890 


Outrora, em Caxias, havia o costume de chamar as empregadas domésticas provenientes dos campos das vacarias de Sia  ou Sea. A origem desse costume deve estar ligada a palavra Sinhá, que era a forma como os escravos chamavam suas donas. Por derivação as serviçais passaram a ser chamadas de Siás.
            Não sei qual era seu verdadeiro nome, nem se tinha sobrenome, era chamada de Sea  Delina.Vivia na  casa de um vizinho nosso. Havia sido escrava, deveria ter cerca de 80 anos em 1940, já não o era, mas ainda era tratada como tal. Ela sempre comia depois dos donos da casa, após ter servido as refeições. Cozinhava como poucas. Seus bolinhos de arroz e as broas de milho eram (e são) inigualáveis .Ela só comia os restos. Diariamente, eu a via comendo num prato de latão na escada externa da casa vizinha. Quando a chuva era muita,  comia na escada interna que levava à seu quarto no porão.
Na nossa casa as empregadas e as pessoas que nela trabalhavam dentro ou fora  independente da cor ou da raça comiam na mesa com a família. Isso era válido para as visitas (de múltiplas colorações e classes) que chegavam por acaso na hora do almoço. Na mesa da casa de meus pais, sempre havia lugar para mais um e mais um prato de comida para o visitante extemporâneo. Lembro que na casa de meus avós (paternos) o costume era o mesmo. Para os imigrantes repartir o pão (ainda que fosse pouco) era costume milenar, da mesma forma que a  sua fome.Dizia  minha mãe:”Nunca se deve negar um prato de comida.”
Mas voltando a Sea Delina um dia a minha curiosidade foi demais e não aguentei. Pulei a cerca que separava nossas casas e perguntei a Sea Delina porque ela não comia na mesa com os da casa. “Os brancos são assim, gostam de separar” ela me respondeu com sua voz baixa e seu jeito meigo. Mas eu retruquei “Sea nós somos brancos, mas lá em casa todos comem na mesa”. Ela finalizou a conversa: “Fia, eles são de outro tipo de brancos”. Ela entrou e foi tratar da vida. Eu não entendi o que ela havia dito. Fiquei matutando sobre os tipos de brancos que existiam, mas suas palavras aderiram à minha memória.
Muitos anos depois percebi o fosso que existia entre os pobres imigrantes donos de um lote rural e os ricos latifundiários, e o muito que separava os donos de escravos e os donos do próprio trabalho. Entendi então, que Sea Delina com sua humildade me dera uma lição.
Para concluir a história, na casa do vizinho havia um enorme pé de camélia (o maior que eu já vi até hoje) que ultrapassava o telhado da sua casa de madeira, de três pavimentos. Muitos anos depois fiquei sabendo que a camélia era à flor dos abolicionistas. Um pé de camélia definia seu dono como abolicionista, e, no caso, como são grandes as incongruências dos homens.
 Loraine Slomp Giron Twitter: loslomp Blog :historiadaquiblogspot.com

domingo, 12 de agosto de 2012



MUSSOLINI  
Belezas do Rio Grande Itaimbézinho 2012 

Poucas pessoas são mais interessantes do que Mussolini. Não me refiro ao Duce italiano, mas a Mathias D’Andrea que tinha esse apelido. Ele me auxiliou demais quando da elaboração da minha tese de doutorado, mas esse é outro assunto.
Mussolini vivia no antigo hotel Pessin , num quarto do terceiro andar do lado   Leste .Ele  amava a música clássica ,muito antes de conhecê-lo eu ouvia o som alto   de Verdi,Rossini e outros compositores da ópera italiana ,clássicos  barrocos e românticos. .Tinha um telescópio apontado para as estrelas. Ele viveu no Hotel até morrer. Havia nascido na Itália. Seu avô era médico, quando menino ia com ele de charrete visitar doentes. Dele herdou a paixão pelo social e como ele se tornou socialista.
Veio para o Brasil com seus pais e irmãos aos doze anos, fugindo das guerras. Tornou-se técnico em eletricidade e piloto amador,Sua maior façanha foi despencar de um teco-teco  que pousou   nos galhos de uma figueira,  nos  fundos do Armazém Mandelli, na esquina das ruas  Pinheiro Machado  e Dr. Montaury. Eu assisti a queda da janela da minha casa,  junto com minha mãe e minha irmã nenê.Vi Mussolini deixar o avião descendo da figueira. Criança não esquece, reserva as memórias.
Creio que era o dia três de setembro de 1944, havia parada estudantil. Na Rua Pinheiro Machado passava a Escola Normal Duque de Caxias. Na Júlio desfilavam outras escolas. Poderia ter ocorrido uma tragédia, mas nada aconteceu e foi apenas episódio que movimentou a pequena Caxias por muito tempo.
Passados anos quando concluía a minha tese me lembrei do Mussolini. Telefonei para ele e ele se prontificou a falar comigo. Tantos anos vivendo no Hotel se tornara parte dele, não conseguindo dormir virou seu guarda. Falamos algumas noites e ele me contou mais dos fascistas e do fascismo que os jornais e os documentos da época.
Falou-me dos grandes fascistas locais, das suas festas burguesas e de seu proselitismo feitos no Clube Juvenil  e nos  cinemas locais. Falou-me dos combates de rua que teve que enfrentar contra os camisas negras. Das lutas levou o apelido do qual jamais conseguiu se livrar. Nada disso aparece nos jornais de então.
Tudo tem uma explicação. A burguesia local se beneficiava com as relações com os fascistas italianos, assim eles eram bem aceitos. Após a derrota do fascismo, muitos deles fugiram de Caxias,outros aqui permaneceram e constituíram famílias. Não é de estranhar que periodicamente ocorram alguns fatos (como na vinda de Cesare Batistti a Caxias) que revelam a origem de algumas famílias, que não acreditam nas leis democráticas. Não resta dúvida que o  fascismo mora em seu coração.
Loraine Slomp Giron Twitter: loslomp Blog :historiadaquiblogspot.com

terça-feira, 7 de agosto de 2012


MORRER DE AMOR (2)


tTmulos de fFrroupilha

Quando éramos pequenas,  minha mãe nos levava a passear no cemitério. Havia então o costume de assistir missa nas nove primeiras sestas feiras do mês. Minha mãe muito criativa cumpria essa devoção no cemitério. Eu ficava vendo os túmulos, escolhendo os meus favoritos (criança consegue brincar com tudo). Eu gostava do túmulo do menino que morrera criança com odor de santidade (assim era dito). Era bem bonitinho com seu retrato sempre cheio de flores frescas. Não sei se alguém ainda o cultua, mas naqueles tempos era venerado, pois que santo. Eu também gostava do rico túmulo da moça que morrera de regime. Dizia-se que havia morrido de tanto tomar remédio para emagrecer. Moça tão linda não precisava ser magra. Morrer de fome me parecia um desperdício.
Mas meu maior favorito  era o túmulo da moça com jeito antigo de melindrosa. Seu vestido parecia ser de musselina fina (o vestido de casamento de minha mãe era assim). Uma coroa de flores de cimento cercava sua fotografia. Ela não morrera de regime, mas de amor. Fiquei matutando, sobre qual seria a doença que pegara para morrer de amor. Afinal eu tinha seis anos!
A cada sesta feira eu perguntava e voltava a perguntar à minha mãe como ela tinha morrido. Creio que de tanto perguntar (e como eu perguntava) ela respondeu que tinha tomado pílulas demais. ”Não para emagrecer, mas para dormir”, esclareceu ela. Voltei a perguntar “por que ela queria dormir”?Irritada minha mãe contou a história num jato. A jovem morta era noiva de um parente de minha mãe. Segundo disse, ela agiu mal, por isso seu noivo (o parente distante) desmanchou o compromisso. Logo eu quis saber o que era desmanchar compromisso, fiquei sabendo que era não casar. Abandonada a ex-noiva não resistiu à tristeza e dormiu para sempre. . Daí eu quis saber o que era agir mal, mas não houve cristo que fizesse minha mãe responder. Fiquei sabendo também que nossa família (pelo parentesco com o primo) era mal vista pela família da noiva abandonada. Fiquei pensando, que talvez minha mãe tivesse dado as pílulas que ela tinha tomado para dormir. Mas, não!
Então, segundo se dizia às moças que ficavam noivas e que rompiam compromisso ficavam faladas e não casavam mais. Ficar solteira na Caxias de antigamente era a mesma coisa que ficar empalhada. Eu nunca tinha visto moças empalhadas, apenas pássaros e bichinhos pequenos. Naquele mundo de sons (afinal, era a era do rádio) as imagens eram poucas. Eu nunca tinha ouvido falar de múmias egípcias. Por ser ignorante, achei burra de mais a ideia de moças empalhadas.   
Um dia eu conheci a irmã da noiva morta. Era feia demais. Perguntei à minha irmã, se a outra a que tomara comprimidos para dormir, não tivera o compromisso rompido por feiura. Não mereci resposta.  Era assim que eram as coisas ditas, naqueles tempos de antigamente.  Cheias de mistérios!
Loraine Slomp Giron Twitter: loslomp Blog :historiadaquiblogspot.com