quinta-feira, 16 de agosto de 2012


SEA DELINA

Ex escravos após a abolição. 1890 


Outrora, em Caxias, havia o costume de chamar as empregadas domésticas provenientes dos campos das vacarias de Sia  ou Sea. A origem desse costume deve estar ligada a palavra Sinhá, que era a forma como os escravos chamavam suas donas. Por derivação as serviçais passaram a ser chamadas de Siás.
            Não sei qual era seu verdadeiro nome, nem se tinha sobrenome, era chamada de Sea  Delina.Vivia na  casa de um vizinho nosso. Havia sido escrava, deveria ter cerca de 80 anos em 1940, já não o era, mas ainda era tratada como tal. Ela sempre comia depois dos donos da casa, após ter servido as refeições. Cozinhava como poucas. Seus bolinhos de arroz e as broas de milho eram (e são) inigualáveis .Ela só comia os restos. Diariamente, eu a via comendo num prato de latão na escada externa da casa vizinha. Quando a chuva era muita,  comia na escada interna que levava à seu quarto no porão.
Na nossa casa as empregadas e as pessoas que nela trabalhavam dentro ou fora  independente da cor ou da raça comiam na mesa com a família. Isso era válido para as visitas (de múltiplas colorações e classes) que chegavam por acaso na hora do almoço. Na mesa da casa de meus pais, sempre havia lugar para mais um e mais um prato de comida para o visitante extemporâneo. Lembro que na casa de meus avós (paternos) o costume era o mesmo. Para os imigrantes repartir o pão (ainda que fosse pouco) era costume milenar, da mesma forma que a  sua fome.Dizia  minha mãe:”Nunca se deve negar um prato de comida.”
Mas voltando a Sea Delina um dia a minha curiosidade foi demais e não aguentei. Pulei a cerca que separava nossas casas e perguntei a Sea Delina porque ela não comia na mesa com os da casa. “Os brancos são assim, gostam de separar” ela me respondeu com sua voz baixa e seu jeito meigo. Mas eu retruquei “Sea nós somos brancos, mas lá em casa todos comem na mesa”. Ela finalizou a conversa: “Fia, eles são de outro tipo de brancos”. Ela entrou e foi tratar da vida. Eu não entendi o que ela havia dito. Fiquei matutando sobre os tipos de brancos que existiam, mas suas palavras aderiram à minha memória.
Muitos anos depois percebi o fosso que existia entre os pobres imigrantes donos de um lote rural e os ricos latifundiários, e o muito que separava os donos de escravos e os donos do próprio trabalho. Entendi então, que Sea Delina com sua humildade me dera uma lição.
Para concluir a história, na casa do vizinho havia um enorme pé de camélia (o maior que eu já vi até hoje) que ultrapassava o telhado da sua casa de madeira, de três pavimentos. Muitos anos depois fiquei sabendo que a camélia era à flor dos abolicionistas. Um pé de camélia definia seu dono como abolicionista, e, no caso, como são grandes as incongruências dos homens.
 Loraine Slomp Giron Twitter: loslomp Blog :historiadaquiblogspot.com

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