Vivi
em meus primeiros anos em três casas. As peças de cada uma estão fixadas em
minha mente como numa planta bem desenhada pro um arquiteto. Lembro-me de cada
móvel e de cada e de cada quadro. De cada peça e de cada louça. Essa lembrança
sem palavras, feita de imagens apenas parece negar a afirmação que sem palavras
não há pensamentos. Há sim e muitos. Há sonos falados, mas em geral eles são
mudos. São cheios de símbolos dos quais as palavras são excluídas. Assim são
algumas lembranças mudas e simbólicas. Para Freud os sonhos são a matéria prima
para o estudo dos pensamentos oníricos latentes. Para ele, ”O sonho representa a realização de um
desejo.” Enfim lembranças são a matéria prima dos sonhos, ou melhor, são sonhos
que se pensa acordado.
O
chicote ficava pendurado numa pequena despensa, cuja porta abria para o lado do
Cinema Ópera, por onde os ratos passavam. O cinema Apollo (assim se chamava)
era o seu viveiro.Meu pai tinha
encontrado o chicote na estrada,provavelmente perdido por um carreteiro. Era de
couro trançado com uma tira única forte e resistente. A chegada do chicote foi
comemorada por minha mãe, que logo me informou que eu seria a principal
usuária. Naqueles tempos bater em crianças era a norma, era uma questão de
disciplina. Antes eu apanhava de chinelo, com a vinda do chicote a surra seria
mais violenta. Apanhei algumas vezes com o novo instrumento de tortura, mas
nada mais do que duas ou três lambadas.. Sempre me pareceu uma grande injustiça
um adulto bater em criança. Nunca fui favorável aos castigos físicos tanto é
que nunca bati em meus filhos, nem em criança alguma Mas era assim que se
educava antigamente.
Também
na escola (estudei no São José) os castigos físicos existiam. Uma das freiras
batia nas mãos das alunas e outra (uma louca) batia na cabeça delas com uma régua.
Isso ninguém me contou, eu mesmo vi. Nenhuma irmã me bateu, mas não sei o que
eu teria feito se alguma o tivesse feito. Havia outros castigos, desses recebi vários.
Um deles consistia em colocar a infratora atrás da porta durante as aulas. Outro era
colocar milho no chão e mandar a vítima se ajoelhar sobre os grãos. Isso era
muito dolorido e os joelhos ficavam inchados.
Apesar
das mudanças no ensino e nas normas punitivas que ocorreram no século XIX em
pelo pleno século XX os castigos existiam na educação brasileira. Segundo Del
Priore, a religião judaico-cristã sempre foi favorável a uma educação baseada em castigos físicos, considerados
como forma segura de educar. Julgava-se
que amar é castigar os erros para dar exemplo de uma vida cristã. Há até um
provérbio "Quem sabe amar, sabe
castigar", que garante a validade da prática dos castigos. Coisas de antigamente, coisas sádicas isso
sim!
Estudos
recentes comprovam que os castigos foram contraproducentes tanto na
aprendizagem quanto na vida. Enfim o chicote da minha infância serve como símbolo
de um tempo, no qual se acreditava que amar era judiar. Triste convicção!
Loraine
Slomp Giron Historiadora
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