sábado, 8 de novembro de 2014

O CHICOTE











Vivi em meus primeiros anos em três casas. As peças de cada uma estão fixadas em minha mente como numa planta bem desenhada pro um arquiteto. Lembro-me de cada móvel e de cada e de cada quadro. De cada peça e de cada louça. Essa lembrança sem palavras, feita de imagens apenas parece negar a afirmação que sem palavras não há pensamentos. Há sim e muitos. Há sonos falados, mas em geral eles são mudos. São cheios de símbolos dos quais as palavras são excluídas. Assim são algumas lembranças mudas e simbólicas. Para Freud os sonhos são a matéria prima para o estudo dos pensamentos oníricos latentes. Para ele, ”O sonho representa a realização de um desejo.” Enfim lembranças são a matéria prima dos sonhos, ou melhor, são sonhos que se pensa acordado.
O chicote ficava pendurado numa pequena despensa, cuja porta abria para o lado do Cinema Ópera, por onde os ratos passavam. O cinema Apollo (assim se chamava) era  o seu viveiro.Meu pai tinha encontrado o chicote na estrada,provavelmente perdido por um carreteiro. Era de couro trançado com uma tira única forte e resistente. A chegada do chicote foi comemorada por minha mãe, que logo me informou que eu seria a principal usuária. Naqueles tempos bater em crianças era a norma, era uma questão de disciplina. Antes eu apanhava de chinelo, com a vinda do chicote a surra seria mais violenta. Apanhei algumas vezes com o novo instrumento de tortura, mas nada mais do que duas ou três lambadas.. Sempre me pareceu uma grande injustiça um adulto bater em criança. Nunca fui favorável aos castigos físicos tanto é que nunca bati em meus filhos, nem em criança alguma Mas era assim que se educava antigamente.
Também na escola (estudei no São José) os castigos físicos existiam. Uma das freiras batia nas mãos das alunas e outra (uma louca) batia na cabeça delas com uma régua. Isso ninguém me contou, eu mesmo vi. Nenhuma irmã me bateu, mas não sei o que eu teria feito se alguma o tivesse feito. Havia outros castigos, desses recebi vários. Um deles consistia em colocar a infratora  atrás da porta durante as aulas. Outro era colocar milho no chão e mandar a vítima se ajoelhar sobre os grãos. Isso era muito dolorido e os joelhos ficavam inchados.
Apesar das mudanças no ensino e nas normas punitivas que ocorreram no século XIX em pelo pleno século XX os castigos existiam na educação brasileira. Segundo Del Priore, a religião judaico-cristã sempre foi  favorável a uma  educação baseada em castigos físicos, considerados como  forma segura de educar. Julgava-se que amar é castigar os erros para dar exemplo de uma vida cristã. Há até um provérbio "Quem sabe amar, sabe castigar", que garante a validade da prática dos castigos.  Coisas de antigamente, coisas sádicas isso sim!
Estudos recentes comprovam que os castigos foram contraproducentes tanto na aprendizagem quanto na vida. Enfim o chicote da minha infância serve como símbolo de um tempo, no qual se acreditava que amar era judiar. Triste convicção!

Loraine Slomp Giron Historiadora

Um comentário: