quinta-feira, 29 de agosto de 2013

SOBRE A NEVE


Nada como viver muito para ter muitas lembranças. Na memória há todas as neves vistas e vividas. Como cartões postais algumas são  um pouco apagados pelo tempo, outras claras como foto recém revelada ( ou impressa) .A  memória reproduz as neves do passado
A primeira imagem da neve data de 1941. Lembro-me das pegadas negras traçadas na neve branca, na paisagem branca de Forqueta. Tão nítida é a imagem que ainda hoje poderia desenha-la. Não tenho lembranças anteriores.Em 1946, meu pai me deixou na porta do São José ,onde eu estudava .Quando ia entrar na sala a professora vendo que havia poucos alunos disse que não passaria matéria nova.Então não tive dúvidas, sai da escola e fui curtir as neve. Fui à casa de uma colega que morava perto da escola e ficamos matando tempo. No final da aula (ou da gazeta) voltei para casa como se nada houvesse acontecido. Assim posso me lembrar dos murros nevados e das flores da praça cobertas de neve.
Lembro-me de outras nevadas, em 1967 ,quando estava dando aula ,em uma sala da antiga Faculdade de Filosofia (onde hoje é a mitra)quando começou a nevar. Dispensei os alunos para que pudessem assistir a nevada. A neve caia belíssima sobre o telhado da Catedral. Lembro-me de um junquilho amarelo saindo da neve, como uma jovem encapotada de branco, no Parque dos Macaquinhos. Coberto com uma manta de neve alvíssima, o mundo parece perfeito. A neve faz o milagre de transformar o frio em beleza. Lastimo que não houvesse então (nos tempos das neves de antanho ) a facilidade das fotos digitais e o conforto da Internet. Hoje de madrugada, quando me levantei olhei pela janela e estranhei a cobertura branca sobre as minhas folhagens. Pensei que alguém tivesse estendido um plástico sobre elas para protegê-las do frio, era a neve. Liguei o computador acompanhei a neve pelo mundo virtual. Tantos tinham postado imagens que consegui vê-la por meio de outros olhos. Tempos de contatos imediatos virtuais, ao abrigo do frio.
A maior nevasca da minha vida ocorreu em 1991, em Budapeste. Fazia menos de 14 graus C (abaixo de zero). A neve era tanta, que minhas botas gaúchas simplesmente se desmancharam. Fiquei com os pés no chão. Sem saber falar uma só palavra de húngaro (nem de alemão a segunda língua de lá) entrei na primeira loja de calçados que encontrei e comprei por meio de sinais umas botas que resistiram à neve  (  e durou mais de vinte invernos). O rio Danúbio que passa entre Buda e Peste tinha blocos de gelo do tamanho de dois andares. Nunca vi e creio que nunca mais  verei  tanta neve. Para nos aquecer compramos uma pequena garrafa de barasca (palinca) feita de damasco que levávamos no bolso ,e de quando em quando, tomávamos um gole.É incrível , o frio impede que se fique bêbado. Mas em compensação esquenta.
É pena, que para os pobres não seja vista apenas a beleza da neve. O frio dói, e quanto!


Loraine Slomp Giron  Historiadora

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

QORPO SANTO


José Joaquim de Campos Leão (1829-1883),nasceu em Triunfo e morreu em Porto Alegre. Adotou como o nome literário  Qorpo Santo, de acordo com a ortografia por ele proposta . Foi professor do magistério público, dramaturgo, poeta, jornalista, tipógrafo, gramático e editor gaúcho.. È um dos mais originais e mordazes  escritores brasileiros. Seu teatro do absurdo e  sua poesia marginal fazem dele um modernista avant  la lettre , como essa :Tão lindas as aranhas/Tão belas, tão ternas/Pois caem do teto/E não quebram as pernas.” Durante anos foi esquecido e posto no ostracismo.Só após 1970 foi  redescoberto e hoje serve como tema de dissertações e teses.
Sua vida foi uma tragédia. Quando tinha 33 anos começou apresentar pretensos problemas mentais o que levou sua esposa a requerer e conseguir  sua interdição pessoal  e a  judicial de seus bens Original mesmo foi o diagnóstico dado à sua ‘doença’: monomania com compulsão pela escrita.Logo   pediu o divórcio( ?)O  engraçado é que então o divórcio ainda não era legal Portanto deve ter pedido separação de corpos.
Qorpo foi internado no hospício e durante sua  estada escreveu diversas obras.Semanas depois, foi  confirmada sua sanidade mental.O  laudo médico  foi assinado por Dr. Torres Homem, que era o maior especialista da época.tendo então recebido alta . Não pretendo aqui fazer um estudo sobre Qorpo Santo apenas chamar a atenção para um  fato , em Caxias no começo do século XX havia apreciadores do mestre do absurdo. O que é  raro  não só em Caxias como em jornais brasileiros de então! Foi  jornal  Cittá de Caxias ,de 18 de abril de 1922, que na primeira página apareceu  um longo artigo com o título  ‘Obras literárias impagáveis’,escrito por Samorin G. de Andrade.O artigo  merece ser lido pelos que apreciam  literatura.
Escreve Samorin que conheceu Qorpo Santo há 40 anos, tendo visitado sua tipografia ,que estava situada num sobradinho, na esquina das ruas dos Andradas  e General Câmara. Segundo ele então o autor estava compondo (na tipografia )sua obra ‘Enciclopédia seis semanas de uma enfermidade’, composta de  cinco volumes. Já tinha publicado dois volume primeiros, o terceitro e o quarto já tinham sido compostos  e o quinto estava no prelo. Foi então que a morte chegou para o poeta. Escreve ainda  que Qorpo Santo teria se” reencarnado” na pessoa do mestre Teixeira Netto que publicou os demais volumes,dando assim paz a alma do poeta.
 Para quem acredita que Caxias foi povoada por um bando de imigrantes ignorantes, chamados por Moyses Vellinho de Massa Ignara, não custaria ler os antigos jornais locais que tratam de literatura e de artes. Há matérias para teses e dissertações e  belas surpresas.
O passado tem sido estereotipado como algo atrasado, só a ignorância do presente pode atribuir isso ao passado. Como disse o sábio Millor Fernandes:”o passado é o presente usado!’E não é?



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

RACISTAS SÃO OS PASSÁROS



            Fico observando os pássaros que visitam o terraço. As visitas tem razão de ser, jogo farelo de biscoito para eles. Que por sinal tem preferência por marca de biscoito, eles gostam dos amanteigados. A observação rende constatações e conclusões nada científicas (ainda bem), mas muito divertidas.  Assim fiquei sabendo que os pássaros mais agressivos são os joão-de-barro, os mais gulosos os bem-te-vis, os mais preguiçosos os sabiás (ave símbolo do Brasil , por puro acaso)que amam comer baratas. Os mais alegres são os pardais e os mais espertos as corruíras.
            Num vaso de samambaia, no terraço, aconteceu de um pequeno tico-tico fazer seu ninho. Logo um chupim veio colocar nele seu ovinho e acabar com os cinco do tico-tico. O mesmo faz o cuco com os filhotes dos rouxinóis, na Europa. Era de se ver o enorme chupim sendo alimentado pela minúscula mãe tico-tico! Espantosa tolice.
Entre os diferentes tipos de aves, vigora um total isolamento, entre eles impera a invisibilidade!Umas ignoram as outras, no mais perfeito apartheid. Os sabiás preferem pegar a comida dos pardais, já os bem-te-vis preferem as grossas migalhas, mas não as roubam dos outros pássaros menores . Os pássaros não cruzam entre si, como os seus antepassados dinossauro . Não há exemplo mais claro de endogamia e racismo que o dos pássaros (será que é assim que se chama?). A coisa muda de figura com alguns mamíferos,como os cachorros,  os gatos,os cavalos entre outros. Mas não entre primatas, não se vê gorila casando com chipanzé, mico com macaco prego. Enfim, há uma natural e cuidadosa separação no cruzamento das espécies.
Finalmente chegamos ao homem que pode ser cruzado com os chimpanzés e com todos vários grupos humanos. Os homens não são como os pássaros cruzam com  todos os grupos de primatas superiores conhecidos. Lógico que o cruzamento não significa ausência de racismo, mas, sim que há não impossibilidades física e cultural para uma (con) vivencia tranquila.
 O Brasil é a terra da mestiçagem cada ser humano tem genes provenientes das mais dispares origens (afinal, é isso que somos: uma espécie).Não existem  sabiás humanos,que sejam  puros em seus genes ! Por isso que eu acho muito engraçado o racismo, mais do que isso, acho ridículo. Mark Twain  um dos primeiros autores a misturar de forma amigável as  ‘raças’ em suas histórias: Lembro-me de uma frase dele “  Não tenho preconceitos de raça, cor ou religião. Tolero qualquer sociedade. Basta-me saber que o homem é um ser humano: ele não pode ser pior”.  Ele não tem razão?  A cor não muda a espécie!
Loraine Slomp Giron

Historiadora


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

DÍVIDA (?)




Com o correio da manhã chegou à surpresa, o aviso de um débito. Se o pagamento não fosse feito em cinco dias haveria a rescisão do contrato e o encaminhamento do meu nome ao SPC e ao Serasa. É justo, quando se deve, se pague. O caso ganha outra feição quando não há nem fatura nem dívida.
Havia no aviso (ou ameaça?) um número. Liguei para informar do problema,não pude explicar  direito, pois, eu não entendia exatamente qual era.Descobri  ( nem fui eu foi meu neto) depois de passar por 17 atendentes que era um serviço( grátis? )de uma empresa de telefone fixo, que disponibilizava um número de celular com o respectivo cartão. Antes de concluir a história devo salientar que odeio celulares, da mesma forma que odeio cartões de crédito. Meu ódio tem  motivos, ambos fornecem formas de controle sobre os indivíduos, nesse século do mais completo e total controle.Não há período mais invasivo.Basta verificar o que é a Internet e o que os Estados Unidos usufruem com  as informações nela produzidas e existentes. Somos reféns da tecnologia. A grande maioria nem se dá conta disso. Gostaria de destacar que no mundo atual não existe nada grátis, não se paga a água e a terra que são de todos? Tudo é pago, só que muitas vezes não se conhece qual a forma de pagamento. Só falta cobrarem pelo sol e pela luz natural.
            Voltando ao celular gratuito.  Um dia recebi um telefonema muito simpático de um robô (se não era parecia) afirmando da economia que eu teria se optasse por um novo plano total B. Como me pareceu racional, aceitei. Ledo engano! Não era o que me foi proposto, mas um serviço acrescido àquele que eu já possuía, e não a troca do já existente, por um melhor. Não foram enviadas as faturas. O motivo? Para poder cobrar juros sobre o atraso, das faturas não pagas, posto que não recebidas. Para não entrar no Serasa a única solução é quitar o débito ainda que indevido. Pelo telefone indicaram o procedimento de como pagar. Claro que estava errado! Nem pagar foi fácil, já que foi necessário passar por três lojas e um banco. Para inicio de conversa tive de conseguir uma segunda via, da primeira via que não existiu. Se existiu (vamos dar o crédito da dúvida!)não foi enviada .No mundo de enganos em que vivemos ser enganado faz parte do cotidiano. Sempre há quem enganar e em matéria de engano o comércio de celulares ganha todas as palmas. Estou aqui para confirmar. Ser lesado pelo e no sistema em que se vive tornou-se natural, paga-se pelas mercadorias preços astronômicos, para logo serem colocadas em liquidação pela metade do preço.  
           Como bem diz Machiavel “São tão simples os homens e obedecem tanto às necessidades presentes, que quem engana encontrará sempre alguém que se deixa enganar.” E isso já acontecia no século XVI. Basta verificar quantos contos do vigário existem hoje. E os direitos do consumidor existem?   Nós os eternos enganados, sabemos que não. 


sexta-feira, 2 de agosto de 2013

TUDO MUITO SIMPLES




Antônio era um solteirão que amava as crianças. Tinha um carinho todo especial pelas as meninas púberes, imigrante italiano, ele ocupou alguns cargos políticos na velha Nova Vicenza. Um dia conheceu uma viúva que tinha duas filhas pequenas. Ele logo percebeu o potencial daquele casamento e como o professor Humbert Humbert  ,de Lolita (Nabokov,1997) atirou-se de cabeça na nova união. Quem me contou essa história foi uma senhora centenária, sem qualquer tipo de juízo de valor. Como algo muito natural e comum, apenas mais um fato.
Enquanto as enteadas amadureciam, aparentemente, foi bom marido. Nada faltava à família, o novo casal não teve filhos. Passados poucos anos quando a menina mais velha completou 12 anos, o padrasto a violou. Ao que tudo indica não houve traumas maiores e a ignóbil relação continuou por três anos. Nem a mãe nem a irmã perceberam o que acontecia, ou preferiram não perceber, disso eu não sei. Pouco tempo depois ela se casou. Um dia chegou à vez da filha mais nova, ter a idade certa, e, mais uma vez, tudo se passou como da primeira vez, de forma supostamente tranquila. Um dia a menina começou a engordar, a mãe descobriu que ela estava grávida. Não dava mais para disfarçar, algo de grave havia acontecido. Antônio não teve dúvidas, imediatamente se pôs em campo e conseguiu um bom marido para sua ‘filha’. Ajudou em tudo,  e os dois casarem.
 Tudo parecia ir bem, até que seu filho começou a crescer. Como aconteceu com o Ezequiel de Dom Casmurro (1899, Assis) o menino era a cara de Antônio, ‘cara de um focinho do outro’, não havia como esconder. Como diz o bom Machado : ’ Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Era como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos. Enfim copiando o autor: era o próprio, o exato, o verdadeiro Antônio. A diferença era apenas idade, um mais novo outro mais velho, no restante, idênticos em tudo, até nos mínimos detalhes. Este era aquele.
Não havia quem não percebesse a semelhança: sua esposa, seu genro e a Vila inteira. Ninguém tinha dúvidas de quem era o pai. Engana-se quem pensa em tragédia! Não houve violência nem mortes acidentais, apenas a vida passando dia a dia. Viveram felizes até o fim de seus dias. Um dia Antônio morreu de velhice e virou escola.  Seu filho se tornou motorista e dono de uma colônia, pois, ao morrer o pai legou-lhe um bom pedaço de terra. Segundo Machado: ‘Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo.  Qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos’. No mais, no dia em que os homens (e as  mulheres) forem decifrados, não haverá mais necessidade de romancistas!

Loraine Slomp Giron - Historiadora